Madalena era uma mulher diferente das outras que conhecia. Não tinha muita vontade de casar e ter filhos — pelo menos, não tinha pressa. Seu irmão, Daniel, era o único da família que tinha algum estudo, e trazia da cidade grande várias revistas que sabia que suas irmãs iriam adorar. Madalena via as revistas e, por não saber ler, imaginava o que estava escrito entre as fotos das modelos e atrizes de cinema. Geralmente, imaginava que aquelas palavras estivessem a convidando para viver outra vida. Desde muito nova, Madalena sabia que era grande e não cabia naquela cidade pequena.
Quando chegou no Rio de Janeiro, Cecília sentiu como se já tivesse pisado naquela terra. Era como se a memória de outras vidas estivessem a inundando. O gosto da maresia que pairava sob o ar de Copacabana parecia tão conhecido e tão caloroso que nada a tiraria da cabeça que um dia já viveu ali. “Em alguma vida”, ela dizia, “Vivi aqui muitos amores. Posso sentí-los dentro de mim.” Por outro lado, a intimidade e a grosseria carioca que não estava habituada a sufocavam. Em São Paulo, leva-se tempo até alguém ter a intimidade necessária para ser sincero com você. No Rio, não há outra forma de viver. Todo esse amor, dor, mágoa e intimidade foram, pouco a pouco, a afogando. Até que, enfim, ela aprendera a flutuar.
Ana fugia. Ana fugiu durante todos os anos de sua vida. Fugiu da superproteção dos seus pais, das limitações de sua cidade, do carinho do seu gato — que a irritava quando implorava por atenção. Ana fugiu dos seus maiores amores, buscando algo que não encontrava em ninguém. Ana fugiu da mesmice, da cafonice, e criou novas formas de se relacionar — nenhuma vingou. Ana fugiu da escola, das três faculdades que iniciou, dos cursos que deixou por fazer e do grande potencial que sua família dizia que tinha. Sua mãe, inclusive, adorava dizer que Ana não sabia o que queria. Mas Ana negava. Ela fugia porque ela sabia exatamente o que queria: mais. Até que um dia, Ana se olhou no espelho e parou de fugir de si mesma.
Vitória conquistou esse nome porque veio ao mundo de forma inconforme. Diferente dos demais bebês, Vitória precisou lutar para sobreviver. Estava com o cordão umbilical enrolado no pescoço, nasceu no meio do trânsito da Praça da Bandeira em dia de jogo do Flamengo, cinco da tarde. Estava quente, e o taxímetro ligado dizia que essa corrida não seria como as outras. Seu Antônio, que já havia levado diversas grávidas para a maternidade naquele mesmo acento, mantinha a calma enquanto a mãe gritava de dor no banco de trás. Abriu todos os vidros e perguntou se Raquel, a mãe, não queria que ele descesse para ajudar. Ela negou. Raquel pariu Vitória, e Vitória se pariu. Nasceu sozinha, sem voz, sem ar, sem pai, avós, segurança, esperanças. Raquel cortou o cordão com a unha de acrigel, que ela tinha feito ontem especialmente para essa ocasião. Assim, no primeiro respiro, Vitória pode, finalmente, chorar.
Elena enxerga o mundo como ninguém mais vê. É como se em volta dela tudo fosse meio colorido, abstrato e se movesse. Queria que fizessem algum exame de imagem, algo assim, para entender se existe algo de errado ali dentro. Ou, pelo menos, só para saber o que há. Uma vez, Elena viu na internet uma foto de um sapo transparente, que mostrava todo seu interior, seus orgãos expostos como em um livro de ciências. Era assim que Elena queria ser. Mas não era. Elena era difícil de conhecer. Não era de compartilhar as coisas da sua vida assim tão fácil. Não sabia explicar para todo mundo que toda aquela sua casca, aquele seu mistério, seu eu mais profundo e escondido, era, na verdade, um grande desejo de ser vista, da mesma forma que via o mundo.
Clarice Lispector escreveu, durante toda sua vida, desafiando a escrita. Uma mulher inconforme, uma mulher que não era daqui — nem de lugar nenhum. Naomi Jaffe diz que o que lhe é mais marcante na escrita de Clarice é o efeito do estranhamento. Clarice era estranha, tanto para os outros quanto para si. Estranha porque, desde pequena, não pertenceu a lugar algum. Mudou-se de país quando tinha 2 anos e, mais tarde, já casada com um diplomata, continuou mudando e mudando. Onde era a casa de Clarice? Muito mais do que todos os seus endereços, sua casa passou a ser dentro dela mesma.
Essas cinco personagens me vieram de uma pesquisa sobre o efeito do estranhamento, um assunto que muito me interessa. Eu, enquanto mulher lésbica. Ou eu, enquanto mulher gorda. Ou eu, enquanto uma criança que se mudou 7 vezes em 2 anos.
Ou eu, enquanto observadora e ouvinte do mundo, apaixonada por mulheres inconformes, estranhas a elas mesmas e aos outros.
» Para quem chegou agora, além de escritora, sou comunicadora, se quiser conhecer mais sobre meu trabalho e mandar jobs clique aqui.